domingo, 29 de maio de 2016

Os Cobras - O LP - 1964



Os Cobras – 1964

A chamada “Bossa Nova” não teve somente a honra de fazer conhecer nossos músicos no exterior. Abriu, de repente, os olhos do próprio público brasileiro sobre a plêiade de talentosos compositores, arranjadores e instrumentistas que há tantos anos se esforçavam na sombra, desconhecidos dos seus próprios patrícios.

Ainda há bem pouco tempo, era praticamente impossível realizar no Brasil um disco moderno puramente instrumental. É um fato reconhecido que, nos últimos 30 anos, o sucesso popular foi o apanágio dos vocalistas. Uma melodia se tornava conhecida graças à letra que lhe era acrescentada, e a voz do cantor, ou... sua propaganda! Somente depois, quando já era bem rabatida a versão vocal, apareciam algumas tentativas, todas com receio de se afastarem demais do tratamento vocal que tinha alcançado o sucesso. Porém, a revolução musical veio! Bossa Nova foi música antes de ser canção! Através do Jazz norte-americano, alguns dos nossos melhores músicos tinham absorvido um novo conceito musical. Um mundo diferente, onde existiam originalidade e espontaneidade. Uma música para músicos! E esse mesmo público, que parecia tão apático, mostrou uma receptividade surpreendente. De todas as classes da sociedade surgiram jovens, de violão, pistom ou saxofone na mão, que receberam a mensagem da nova música como a chegada de um Messias.

Porém por mais linda que seja, uma forma musical não se satisfaz com uma simples linha melódica, alguns acordes de acompanhamento e solos enfileirados um atrás do outro! Ela requer um desenvolvimento, um enriquecimento que a complete e khe dê um aspecto definitivo, que poderíamos chamar, talvez, de classicismo. Isto, é o trabalho dos arranjadores.

Quando Roberto Jorge recebeu da RCA Victor o convite pra produzir, em relação ao setor “Bossa-Jazz-Samba”, sua primeira preocupação, na preparação desse disco, foi a de obter a colaboração de alguns dos melhores arranjadores. Estes receberam toda liberdade em relação à instrumentação e os executantes.

A seção rítmica foi constituída de Tenório Jr., piano, José Carlos (Zezinho) baixo e Milton Banana, bateria. Tenório Jr. já conquistou no meio musical uma invejável fama de solista imaginativo e acompanhante seguro. Zezinho foi recentemente “importado”de São Paulo por Tenório Jr.. Ainda é relativamente desconhecido no Rio de Janeiro, mas, por pouco tempo! Milton Banana, um dos melhores bateristas, já viajou pelos Estados Unidos com o conjunto de Oscar Castro Neves.

A esta “cozinha”, bem entrosada por uma longa temporada na boate “Manhattan”, podemos acrescentar, como elementos fixos das diversas sessões, o trombonista Raulzinho, e o pistonista Hamilton. Raulzinho é provavelmente o nosso melhor improvisador. Seu estilo nervoso, suas frases rapidíssimas, porém, lógicas e bem construídas, arrancam gritos de admiração de todos os seus ouvintes. Porém, há alguns anos, Raulzinho, para não morrer de fome, teve que ingressar numa banda militar. Tocava quase tão bem quanto hoje, mas ninguém o entendia! Hamilton é o “pistonista da casa”, da RCA Victor. Além de admirável técnico e “leitor”, ele mostra  também como solista que suas concepções de improviso estão perfeitamente ambientadas no movimento novo.
A este conjunto básico, escolhido por unanimidade, cada arranjador veio acrescentar sua própria voz instrumental e, vez por outra, mais alguns elementos necessários para a orquestração desejada.

Quintessência: Meireles, recém-chegado, porém, já bem estabelecido no panorama dos nossos arranjadores, apresenta neste disco uma versão aperfeiçoada de sua composição “Quiessência”, bastante influenciada pelo Jazz, do qual ele é um dos nossos melhores expoentes. Raulzinho, Hamilton e Meireles no sax-alto improvisão alguns dos melhores dolos do disco.

Nanã: Em “Nanã”, a maravilhosa composição de Moacyr Santos e Mário Telles, Meireles troca o sax-alto pela flauta. Ele expõe o tema em uníssono com o trombone, enquanto Hamilton interpreta um simples e lindo contracanto. Hamilton lidera a segunda parte, que abre caminho para solos de flauta, pistom e trombone. A seguir, Paulo Moura e seu sax-alto substituem Meireles. Paulo Moura é um desses profetas que, durante os últimos dez anos, lutavam contra ventos e marés para transmitir a mensagem da boa música. Ele chegou a dirigir uma excelente grande orquestra, verdadeira revelação para os raros musicófilos da época. Infelizmente, as circunstâncias econômicas... bem, já sabem! Com o primeiro conjunto “Bossa-Rio”, ele se apresentou no famoso concerto de “Bossa Nova”do Carnegie Hall nova-iorquino.

Depois de Amar: Em “Depois de Amar”, de Orlann Divo e Roberto Jorge, Paulo Moura ornamenta o tema à maneira dos arranjadores de pequenos conjuntos de Jazz, deixando amplo espaço “ad-lob”para Raulzinho, ele próprio e Tenório.

Adriana: De Roberto Menescal e Luiz Fernando Freire, difícil composição ritmada em 5/8, era um verdadeiro desafio. O talento do arranjador e a experiência comprovada dos membros do conjunto permitiram realizar uma pequena joia musical. Jorginho, mais um desses talentosos músicos, acrescenta sua flauta ao “voicing”do conjunto. Tenório executa um solo, no mais familiar 2/4 do Samba.

Praia: Em “Praia”, de Orlann Divo e Roberto Jorge, Paulo Moura utilizou ao máximo as possibilidades da instrumentação, “abrindo” o som para dar a ilusão de um conjunto muito maior. Raulzinho, como sempre, sola impecavelmente.

Uganda: De Orlann Divo e Roberto Jorge, foi magnificamente aproveitada por Cipó. Cipó e seu enégico sax-tenor são bem conhecidos do público frequentador de “Jam’sessions”. Um dos nomes mais experimentados profissionais, compositor e arranjador avançado, ele nunca teve, antes deste disco, a oportunidade de se expressar em completa liberdade. Cipó reforçou o Hamilton com o sax-alto de Jorginho e acrescentando também ao conjunto o sax-barítono Aurino; juntou sax-tenor, trombone e sax-barítono para construir um aveludado naipe de “graves”. Aurinosempre presente quando se trata de tocar “à vontade”, e também um dos poucos que durante a última década, defendeu ardentemente a causa de uma música “diferente”, baseada sobre o livre improviso. Cipó soube atender e utilizar o espírito do tema que, numa espécie de reunião das tendências musicais afro-americanas, apresenta, na sua primeira parte, uma sugestão do ritmo básico norte-americano, com a alternância bem marcada do tempo forte melódico e do tempo fraco rítmico, enquanto a segunda parte se reveste de forma mais tipicamente brasileira.

The Blues Walk: Simples “blue”, de autoria do falecido pistonista americano Clifford Brown, já serviu inúmeras vezes de trampolim para os improvisos de músicos brasileiros. Enriquecido por intervenções de naipes entre os solos, recebe aqui uma sonoridade de grande orquestra, graças à orquestração “aberta”de Cipó. É sem dúvida a faixa “brasa” do disco. Tão grande foi o entusiasmo dos executantes que a faixa foi considerada “boa pra gravar” na primeira tomada.

40 Graus: Composição original de Cipó, é, como disse o autor, um “Sacundin!”. Isto significa que tem esse andamento descontraído e balançado, em tempo médio, tão favorável ao impulso rítmico, que se tornou popular com as composições do cantor Jorge Bem. “40 Graus” não é uma “brasa”, mas tem este calor úmido e impregnante de uma tarde de verão.

Chão: Linda melodia em tempo lento, da autoria de Roberto Jorge e Amaury Tristão, foi uma das composições que mais agradaram aos executantes. Contém solos de Cipó, Aurino e Raulzinho.

Mar, Amar: Em “Mar, Amar”, da dupla Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, Carlos Monteiro de souza realiza um arranjo interessante, no qual cada instrumento se reveza na liderança.

Moça da Praia: Também de Roberto Menescal e Luiz Fernando Freire, é “puxado”pelo vibrafone de Ugo, com algumas intervenções de Paulo Moura. Como já dissemos, este disco tem como primeiro objetivo a apresentação de alguns dos nossos melhores arranjadores modernos. Porém, o resultado final só podia ser garantido pela presença de solistas imaginativos e perfeitamente ambientados com o clima que o arranjador quis dar à obra. Este entrosamento entre, poderíamos dizer, o cérebro e os membros foi perfeitamente conseguido. Cremos que a audição deste LP proporcionará aos discófilos tanto prazer quanto já ofereceu aos que o produziram.

Texto original de Robert Celerier.