domingo, 11 de dezembro de 2011

Manuel Gusmão - Contrabaixo Brasil

Pedro Paulo (trompete), Luiz Carlos Vinhas (piano), Manuel Gusmão (baixo),
Dom Um Romão (bateria) e J.T. Meirelles (sax)

Manuel Gusmão (1934-2006)
Vou falar aqui um pouco sobre esse grande contrabaixista do Brasil que se chama Manuel Gusmão. Não é uma biografia, longe disso. São alguns dados que fui pegando aqui e ali como tantos outros. Apenas tento juntar os fatos e dar uma ordem cronológica. As pessoas que visitam esse blog também podem contribuir. Por exemplo: no encarte do relançamento do disco em CD do Meirelles, Copa 5, "O Som", a data de nascimento do Gusmão aparece como 1o de julho de 1934. Já vi 1927. E aí? Essa questão já está resolvida. Recebi um e-mail do Arnaldo DeSolteiro corrigindo essa pendência. Manuel Gusmão nasceu no Rio de Janeiro em 1o de junho de 1934. O site do DeSolteiro é http://jazzstation-oblogdearnaldodesouteiros.blogspot.com/. Vale a pena dar uma conferida.

A primeira informação sobre Gusmão aparece em comentário de Arnaldo DeSolteiro sobre o primeiro disco de Mario Castro Neves “Mário Castro Neves e Samba S.A.” de 1967.

Vejamos:

"Por volta de 1955, o quarteto formado por Mário, Leo, Iko e Oscar - informalmente conhecido como American Jazz Combo em apresentações na Rádio Difusora de Petrópolis, virou o quinteto “Os Modernos” com a adesão de Manuel Gusmão no vocal. “Nosso repertório incluía músicas do Mário e standards americanos”, relembra Gusmão, que entraria para a história da bossa como baixista dos discos de estréia de Jorge Ben (“Samba Esquema Novo”), Flora Purim (“Flora É MPM”), Meirelles (“Copa 5”) e Wanda Sá (“Vagamente”).

Nos anos 1950, logo após a 2ª Grande Guerra, o mundo respira Jazz. O cinema americano invade o mundo com sua propaganda e apoteose. O mundo é Hollywood e Disneylândia. Todo filme tem uma grande trilha sonora. A época sombria das bombas e do medo gera o som pesado dos porões e do Bebop. Da euforia a depressão nasce o Cool Jazz, com Miles Davis e companhia. O Rio de Janeiro, capital do Brasil, começa a sair da “fossa”, dos seus boleros e da sua "dor de cotovelo” pela perda da Copa de 50. Deixa de ser “Jeca”, esquece as suas sarnas e a rapadura e redescobre o samba. A batida pode ser a mesma, 2/4, mas agora o buraco é mais em baixo. Uma garotada que nasceu ouvindo jazz está na pista. Tocam muito. 

Em 1962 Gusmão participa da gravação do disco de Meirelles “João and His Bossa Kings – Cool Samba”. É um disco para o mercado americano, daí o título. João na realidade é João Theodoro Meirelles, o J.T. Meirelles conhecido nosso. Já coloquei esse disco aqui no blog.

Nesse mesmo ano, 1962, Gusmão funda o “Copa Trio” com João Palma na bateria e Toninho Oliveira no piano.
Nesse disco de vários artistas, 1965, o Copa Trio toca Meu Fraco é Café Forte, composição de Dom salvador

Por algum problema, sei lá, ele troca a turma para Dom Um Romão, na bateria e Dom Salvador no piano. Conheço o João Palma, muito bom, mas, do Toninho não me lembro. De qualquer forma, acho que a troca foi boa. Esse Trio da pesada acompanhou, aliás, deu uma força para Elis Regina em seu primeiro show no Beco das Garrafas (Little Club), que era quase um quartinho. Não sei como as pessoas se ajeitavam ali.

Na foto, em frente ao famoso ar Bottles, vemos: Dom Um Romão, Manuel Gusmão,
Jorge Ben e Dom Salvador.
(Livro - Bossa Nova - História Som e Imagem)


Gusmão, além do Copa Trio, ainda mantinha o Copa 5 com J.T. Meirelles (sax). Aí, sim, um time da pesada; samba-bossa-jazz na veia. Essa usina de som deu uma força para um pretinho cheio de ginga que pintava no Beco de vez em quando, um tal de Jorge Ben. Já tinha cantado rock e twist na Boate Plaza, na Princesa Isabel, mas não deu em nada. Quando encontrou essa galera a coisa mudou. Gravou com a turma “Samba Esquema Novo” (1963). Tocou “Mas, Que Nada” e “Por Causa de Você”. Umas besteiras para a turma acostumada a Miles Davis. Mas o swing era bom e o disco estourou nas paradas. Sérgio Mendes e Dom Um Romão ganharam uma grana legal com “Mas, Que Nada” lá na Disneylândia.




O Copa Trio só gravou um compacto de 78 rotações. Aparecem em algumas compilações por aí, como “A Bossa no Paramount” (1963) e “É Tempo de Música Popular Moderna” (1964), eu acho que é só isso. Já o Copa 5, deixou dois standards do gênero: “O Som” (1964) com Meirelles no sax, Gusmão no baixo, Pedro Paulo no trompete, Luiz Carlos Vinhas no piano e Dom Um Romão na bateria. Uma turma de respeito. Já no disco seguinte, “O Novo Som” (1965), sai o Vinhas e entra o Deodato no piano. Na bateria sai Dom Um e entra Edson Machado. Ou seja, só fera também. Essa nova formação contava ainda com Roberto Menescal (violão) e Waltel Branco (guitarra). Esses músicos eram tão bons, que cada um, mais tarde, seguiu seu rumo e construíram sólida carreira no Brasil e no exterior.



1964, Beco das Garrafas - Manuel Gusmão, Paulo Moura, J.T.Meirelles e Toninho Oliveira.
Em 1967, passa a tocar no Conjunto 3D de Antônio Adolfo. Esse grupo nasceu do Trio 3D, do próprio Antônio Adolfo, agora com vocais. Sua formação: Antônio Adolfo no piano, Nelson Serra de Castro na bateria, Manoel Gusmão no baixo, Hélio Delmiro (estreando) na guitarra, Bete Carvalho (em início de carreira) e Eduardo Conde nos vocais.

Bom, a partir daqui vou deixar vocês com o texto de Arnaldo DeSouteiro (Produtor musical, historiador de jazz e música brasileira, jornalista e educador – membro da IAJE, International Association of Jazz Educators), publicado em
após a morte desse grande músico.

Saudades de Manuel Gusmão
Jazz news
Nesse artigo testemunho, Arnaldo DeSolteiro fala sobre não só sobre o descaso com que a imprensa tratou o falecimento de Manuel Gusmão, mas também da importância desse grande contrabaixista brasileiro.

Gusmão (primeiro à esquerda) com o grupo Samba S.A. (Mario Castro-Neves, Ithamara Koorax, Ana Zinger e César Machado) em 2004.
(25/05/2006 - Arnaldo DeSouteiro).

Não foi a primeira vez, nem será a última. Aconteceu com Laurindo Almeida, Lindolfo Gaya, Milton Banana, Zé Bodega, Juarez Araújo; alguns dos maiores músicos da história morreram sem merecer um obituário nos chamados “grandes jornais”. Afinal, morto não tem como pagar jabá e a família não tem tempo de preparar press-release. Além do mais, já vai longe o tempo em que artista, ao passar desta para melhor, merecia ter sua obra revista nos cadernos de cultura por um suposto "especialista". Hoje, algum amigo influente consegue no máximo um obituário todo truncado no primeiro caderno, ao lado do noticiário criminal – Eloir de Moraes, Luiz Bonfá e Dom Um Romão conseguiram este “privilégio”, com suas carreiras (mal) revisadas em textos deploráveis.

Manuel Gusmão mereceu um aviso de missa de sétimo dia da sempre amável Hilde e outra nota na coluna do sempre atento Tárik, no JB. E só. Tenho certeza de que ambos os ilustres jornalistas gostariam de ter dado mais espaço a Gusmão.

Brilhante trajetória
Minha admiração por Gusmão começou na infância, por conta de sua participação no lp de estréia de Flora Purim (“Flora é MPM”), cujo primeiro relançamento mundial em cd eu tive o prazer de produzir em 2001. Foi gravado em 1964, ano em que o samba-jazz estava no auge. Mas Gusmão já reinava como baixista nº 1 da bossa desde a abertura dos clubes (Bottles, Baccara, Little Club) do Beco das Garrafas. Fundador do Copa Trio, com Toninho Oliveira ao piano e João Palma (então com 17 anos) na bateria, chamou Dom Um Romão quando Palma ingressou no serviço militar. Mais tarde, depois de Romão conhecer Dom Salvador durante uma viagem a São Paulo, o pianista nascido em Rio Claro substituiu Toninho, compondo-se assim a formação mais conhecida do conjunto.

O Copa Trio acompanhou Elis Regina em seu primeiro show, realizado no Little Club (com participações especiais do pandeirista Gaguinho e da bailarina Marly Tavares) e depois no Bottle’s, antes de seguir para o Teatro Paramount, em São Paulo. No livro “Chega de saudade”, Ruy Castro conta que “o hotel Danúbio praticou racismo explícito e recusou-se a receber Dom Um e Salvador, Elis e Gusmão armaram uma cena na recepção e, com a intervenção de Walter Silva, o hotel só faltou dar a suíte presidencial aos dois músicos negros”. Talvez para evitar que o problema se repetisse, além da óbvia economia financeira, nos shows seguintes o Copa Trio acabou cedendo lugar ao Jongo Trio (de Sabá, Cido Biancchi e Toninho Pinheiro), sediado em Sampa.

Em seu website, o produtor e radialista Walter Silva (Pica-Pau), comenta a presença do Copa Trio na compilação “A bossa no Paramount” (RGE). Destaque para o número criado para o show O Remédio é Bossa, de 26 de outubro de 1964, quando Elis Regina e Marcos Valle, com a participação do Copa Trio, tiraram da platéia os maiores aplausos daquela noite cantando Terra de Ninguém, de Marcos e Paulo Sergio Valle. O número começa com Marcos, ao violão, com um filete de luz dourada sobre sua cabeça, vestindo um suéter azul-turquesa e termina com Elis surgindo no meio do número, sobre um praticável redondo com o ritmo sendo desdobrado, por Dom Um na bateria, Salvador no piano e Gusmão no contrabaixo que soou como uma explosão, levantando a platéia, em delírio. Inesquecível”.

Enquanto isso, no Rio, um futuro astro vivia dando canja nos shows do Copa Trio desde 1961, convidado por Gusmão, seu companheiro nas peladas do Posto Seis: Jorge Ben, para quem os puristas logo torceram o nariz. Mas Gusmão se divertia quando ele cantava “Por causa de voxê, menina”. Esta música e principalmente “Mas que nada” despertaram a atenção de João Mello e Armando Pittigliani, produtores que logo o contrataram em 1963 para a Philips. Puxado pelas duas canções (originalmente lançadas em um 78 rotações!), o LP “Samba esquema novo” trazia arranjos de Meirelles, Gaya e Luiz Carlos Vinhas, com o grupo Copa 5 na base. Explica-se: paralelamente ao Copa Trio existia o Copa 5, liderado pelo saxofonista João Theodoro Meirelles e complementado por Pedro Paulo no trompete.

O estouro de “Samba esquema novo”, que atingiu a marca de 100 mil cópias, levou a Philips a convocar Jorge para dois discos em 64: “Sacundin ben samba” e “Ben é samba bom”, novamente com o suporte imprescindível do Copa 5. Naquele mesmo ano e para o mesmo selo, o grupo participou de “A bossa moderna de Luiz Henrique”. No embalo, Pittigliani autorizou o primeiro LP de Dom Um Romão (“Dom Um”, com Gusmão na base de uma big-band infernal) e a estréia de Meirelles e Os Copa 5 (já com Luiz Carlos Vinhas ao piano) no ultra-jazzístico “O som”, seguido em 65 pelo “O novo som”, ficando apenas Meirelles e Gusmão da formação original, com Eumir Deodato ao piano, Edison Machado na bateria, Waltel Branco (guitarra) e Roberto Menescal (violão). Isso mesmo: seis músicos, apesar do nome permanecer Copa 5.

Ah, antes disso, ainda em 64 Gusmão havia tocado em duas faixas (“Vivo sonhando” e “Vagamente”) do “Wanda vagamente” de Wanda Sá na RGE, integrando o conjunto do pianista Tenório Jr. (com Celso Brando, Pedro Paulo e Edison Machado). E se, infelizmente, o Copa Trio nunca registrou um disco inteiro em seu nome, pelo menos gravou uma faixa fenomenal (“Meu fraco é café forte”, de Dom Salvador, com solos não menos espetaculares de Gusmão e Dom Um) para o LP “É tempo de música popular moderna”, captado ao vivo no Leme Palace Hotel, em 7 de agosto de 64, durante concerto beneficente organizado por Stella Marinho, então esposa do jornalista Roberto Marinho, reunindo também Luiz Henrique, Os Cariocas, Jorge Ben e Tamba Trio. Apesar da precária qualidade técnica, consegui incluir esta preciosa faixa na compilação “A trip to Brazil vol.3: back to bossa”, lançada no exterior pela Universal em 2002.

Aclamação mundial
Comparado pelo All Music Guide a Ron Carter e Richard Davis, influenciado por Percy Heath e Ray Brown, Gusmão mostrou toda a sua classe nos dois discos do Copa 5, relançados em CD pelo selo Dubas. Sua execução limpa, precisa e segura, altamente jazzística, diferenciava-se da técnica rudimentar de outros baixistas da bossa. Além do mais, ele sabia orientar o posicionamento do microfone. Por isso, nenhum outro disco daquela época trazia um som de contrabaixo superior ao encontrado em “O som” e “O novo som”. Liderando seu próprio trio, ao lado de Edison Machado e do pianista Moacir Peixoto, Gusmão rumou para os EUA e depois para o México, onde viveu durante quatro anos. “Fiquei amigo do principal empresário mexicano, Rogelio Villa Real, sócio da cadeia de hotéis Camiño Real e de um local maravilhoso chamado El Señorial, que abrigava nada menos que cinco casas de shows. Depois da Copa de 70, aí a coisa explodiu de vez, só dava Brasil”, contou-me em 2001, em depoimento utilizado no texto para o CD “Carlos Lyra Saravá!”

Excursionou pela Europa e, após temporada na Alemanha, voltou ao Brasil em 1975, quando conheceu Aparecida. Passou a tocar com João Donato e Edison Machado no Breguete, o mais punk clube de jazz do Brasil, em cima de um posto de gasolina na entrada de Petrópolis, onde o impacto de ouvir aqueles músicos marcou a minha infância. Reencontrei Gusmão em 1981, tocando no restaurante Parky’s (de Marly Sampaio e Lucia Sweet), em São Conrado. Depois veio a fase de ouvi-lo todas as noites em suas temporadas nas boates Calígula (por volta de 85), People, Club 1 (em trio intimista, sem bateria, ao lado de José Roberto Bertrami e Maria Fattoruso em 93), Noturno (com Edson Frederico) e finalmente no Guimas, já no novo milênio. Também excelente cantor, vidrado em Sinatra e Nat King Cole, sabia de cor todos os standards.

Bossa eterna
Durante uma das vindas de Dom Salvador ao Brasil, em 2000, Dom Um Romão e Gusmão tentaram realizar o sonho de fazer um disco do Copa Trio. Tivemos algumas reuniões na minha casa, mas Salvador precisava retornar logo para NY, e o projeto terminou arquivado. Gusmão também mostrava-se reticente em voltar a gravar – algo que não fazia desde o LP “Muito na onda”, do Conjunto 3-D (liderado por Antonio Adolfo com Beth Carvalho, Eduardo Conde, Nelson Serra e marcando o début de Helio Delmiro) para o selo Copacabana em 1967. Mas acabei convencendo-o a participar, ao lado de Dom Um, do disco de estréia (mais um!) da pianista Paula Faour, “Cool bossa struttin’”, de grande repercussão em 2002 no Japão, onde Gusmão foi chamado de “o Ray Brown brasileiro” pela revista Swing Journal. Sua execução em todas as faixas, notadamente “O grande amor”, “Tristeza” e “Blue in green”, é brilhante. E, além de produzir o CD, ainda tive a alegria de dividir os vocais com Gusmão e Paula na faixa “Mr. Tom”.

Outra sessão memorável que produzi para o meu selo JSR, com Gusmão arrasando em todas as músicas, aconteceu em janeiro de 2004 para o álbum “On a clear bossa day”, reativando o quinteto Samba S.A. de Mario Castro-Neves (com César Machado na bateria, Ithamara Koorax e Ana Zinger nos vocais). Novamente a imprensa japonesa se derramou em elogios ao trabalho de Gusmão, em especial à faixa “Tokyo waltz”. Nossa última gravação aconteceu para o próximo disco de Ithamara. Neste momento, o mercado europeu recebe os singles dos primeiros remixes, incluindo a faixa “O vento”, com uma primorosa performance de Gusmão usando o arco do contrabaixo. Tomamos um whiskinho para comemorar. Afinal, apesar do marca-passo, ele próprio avisava: “Não sou homem de alface”. Saudade.