Os Cobras – 1964
A chamada “Bossa Nova” não teve somente a honra de fazer
conhecer nossos músicos no exterior. Abriu, de repente, os olhos do próprio
público brasileiro sobre a plêiade de talentosos compositores, arranjadores e
instrumentistas que há tantos anos se esforçavam na sombra, desconhecidos dos
seus próprios patrícios.
Ainda há bem pouco tempo, era praticamente impossível
realizar no Brasil um disco moderno puramente instrumental. É um fato reconhecido
que, nos últimos 30 anos, o sucesso popular foi o apanágio dos vocalistas. Uma
melodia se tornava conhecida graças à letra que lhe era acrescentada, e a voz
do cantor, ou... sua propaganda! Somente depois, quando já era bem rabatida a
versão vocal, apareciam algumas tentativas, todas com receio de se afastarem
demais do tratamento vocal que tinha alcançado o sucesso. Porém, a revolução
musical veio! Bossa Nova foi música antes de ser canção! Através do Jazz norte-americano,
alguns dos nossos melhores músicos tinham absorvido um novo conceito musical.
Um mundo diferente, onde existiam originalidade e espontaneidade. Uma música para
músicos! E esse mesmo público, que parecia tão apático, mostrou uma
receptividade surpreendente. De todas as classes da sociedade surgiram jovens,
de violão, pistom ou saxofone na mão, que receberam a mensagem da nova música
como a chegada de um Messias.
Porém por mais linda que seja, uma forma musical não se
satisfaz com uma simples linha melódica, alguns acordes de acompanhamento e
solos enfileirados um atrás do outro! Ela requer um desenvolvimento, um
enriquecimento que a complete e khe dê um aspecto definitivo, que poderíamos
chamar, talvez, de classicismo. Isto, é o trabalho dos arranjadores.
Quando Roberto Jorge recebeu da RCA Victor o convite pra
produzir, em relação ao setor “Bossa-Jazz-Samba”, sua primeira preocupação, na
preparação desse disco, foi a de obter a colaboração de alguns dos melhores arranjadores.
Estes receberam toda liberdade em relação à instrumentação e os executantes.
A seção rítmica foi constituída de Tenório Jr., piano, José
Carlos (Zezinho) baixo e Milton Banana, bateria. Tenório Jr. já conquistou no
meio musical uma invejável fama de solista imaginativo e acompanhante seguro.
Zezinho foi recentemente “importado”de São Paulo por Tenório Jr.. Ainda é relativamente
desconhecido no Rio de Janeiro, mas, por pouco tempo! Milton Banana, um dos
melhores bateristas, já viajou pelos Estados Unidos com o conjunto de Oscar
Castro Neves.
A esta “cozinha”, bem entrosada por uma longa temporada na
boate “Manhattan”, podemos acrescentar, como elementos fixos das diversas
sessões, o trombonista Raulzinho, e o pistonista Hamilton. Raulzinho é
provavelmente o nosso melhor improvisador. Seu estilo nervoso, suas frases
rapidíssimas, porém, lógicas e bem construídas, arrancam gritos de admiração de
todos os seus ouvintes. Porém, há alguns anos, Raulzinho, para não morrer de
fome, teve que ingressar numa banda militar. Tocava quase tão bem quanto hoje,
mas ninguém o entendia! Hamilton é o “pistonista da casa”, da RCA Victor. Além de
admirável técnico e “leitor”, ele mostra
também como solista que suas concepções de improviso estão perfeitamente
ambientadas no movimento novo.
A este conjunto básico, escolhido por unanimidade, cada
arranjador veio acrescentar sua própria voz instrumental e, vez por outra, mais
alguns elementos necessários para a orquestração desejada.
Quintessência: Meireles, recém-chegado, porém, já bem
estabelecido no panorama dos nossos arranjadores, apresenta neste disco uma
versão aperfeiçoada de sua composição “Quiessência”, bastante influenciada pelo
Jazz, do qual ele é um dos nossos melhores expoentes. Raulzinho, Hamilton e
Meireles no sax-alto improvisão alguns dos melhores dolos do disco.
Nanã: Em “Nanã”, a maravilhosa composição de Moacyr Santos e
Mário Telles, Meireles troca o sax-alto pela flauta. Ele expõe o tema em
uníssono com o trombone, enquanto Hamilton interpreta um simples e lindo
contracanto. Hamilton lidera a segunda parte, que abre caminho para solos de
flauta, pistom e trombone. A seguir, Paulo Moura e seu sax-alto substituem
Meireles. Paulo Moura é um desses profetas que, durante os últimos dez anos,
lutavam contra ventos e marés para transmitir a mensagem da boa música. Ele
chegou a dirigir uma excelente grande orquestra, verdadeira revelação para os
raros musicófilos da época. Infelizmente, as circunstâncias econômicas... bem,
já sabem! Com o primeiro conjunto “Bossa-Rio”, ele se apresentou no famoso
concerto de “Bossa Nova”do Carnegie Hall nova-iorquino.
Depois de Amar: Em “Depois de Amar”, de Orlann Divo e Roberto
Jorge, Paulo Moura ornamenta o tema à maneira dos arranjadores de pequenos
conjuntos de Jazz, deixando amplo espaço “ad-lob”para Raulzinho, ele próprio e
Tenório.
Adriana: De Roberto Menescal e Luiz Fernando Freire, difícil
composição ritmada em 5/8, era um verdadeiro desafio. O talento do arranjador e
a experiência comprovada dos membros do conjunto permitiram realizar uma
pequena joia musical. Jorginho, mais um desses talentosos músicos, acrescenta
sua flauta ao “voicing”do conjunto. Tenório executa um solo, no mais familiar
2/4 do Samba.
Praia: Em “Praia”, de Orlann Divo e Roberto Jorge, Paulo
Moura utilizou ao máximo as possibilidades da instrumentação, “abrindo” o som
para dar a ilusão de um conjunto muito maior. Raulzinho, como sempre, sola
impecavelmente.
Uganda: De Orlann Divo e Roberto Jorge, foi magnificamente
aproveitada por Cipó. Cipó e seu enégico sax-tenor são bem conhecidos do público
frequentador de “Jam’sessions”. Um dos nomes mais experimentados profissionais,
compositor e arranjador avançado, ele nunca teve, antes deste disco, a
oportunidade de se expressar em completa liberdade. Cipó reforçou o Hamilton
com o sax-alto de Jorginho e acrescentando também ao conjunto o sax-barítono
Aurino; juntou sax-tenor, trombone e sax-barítono para construir um aveludado
naipe de “graves”. Aurinosempre presente quando se trata de tocar “à vontade”,
e também um dos poucos que durante a última década, defendeu ardentemente a
causa de uma música “diferente”, baseada sobre o livre improviso. Cipó soube
atender e utilizar o espírito do tema que, numa espécie de reunião das
tendências musicais afro-americanas, apresenta, na sua primeira parte, uma
sugestão do ritmo básico norte-americano, com a alternância bem marcada do
tempo forte melódico e do tempo fraco rítmico, enquanto a segunda parte se
reveste de forma mais tipicamente brasileira.
The Blues Walk: Simples “blue”, de autoria do falecido
pistonista americano Clifford Brown, já serviu inúmeras vezes de trampolim para
os improvisos de músicos brasileiros. Enriquecido por intervenções de naipes
entre os solos, recebe aqui uma sonoridade de grande orquestra, graças à
orquestração “aberta”de Cipó. É sem dúvida a faixa “brasa” do disco. Tão grande
foi o entusiasmo dos executantes que a faixa foi considerada “boa pra gravar”
na primeira tomada.
40 Graus: Composição original de Cipó, é, como disse o autor,
um “Sacundin!”. Isto significa que tem esse andamento descontraído e balançado,
em tempo médio, tão favorável ao impulso rítmico, que se tornou popular com as
composições do cantor Jorge Bem. “40 Graus” não é uma “brasa”, mas tem este
calor úmido e impregnante de uma tarde de verão.
Chão: Linda melodia em tempo lento, da autoria de Roberto Jorge
e Amaury Tristão, foi uma das composições que mais agradaram aos executantes.
Contém solos de Cipó, Aurino e Raulzinho.
Mar, Amar: Em “Mar, Amar”, da dupla Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, Carlos Monteiro de souza realiza um arranjo interessante, no qual cada instrumento se reveza na liderança.
Moça da Praia: Também de Roberto Menescal e Luiz Fernando Freire, é “puxado”pelo vibrafone de Ugo, com algumas intervenções de
Paulo Moura. Como já dissemos, este disco tem como primeiro objetivo a
apresentação de alguns dos nossos melhores arranjadores modernos. Porém, o
resultado final só podia ser garantido pela presença de solistas imaginativos e
perfeitamente ambientados com o clima que o arranjador quis dar à obra. Este
entrosamento entre, poderíamos dizer, o cérebro e os membros foi perfeitamente
conseguido. Cremos que a audição deste LP proporcionará aos discófilos tanto
prazer quanto já ofereceu aos que o produziram.
Texto original de Robert Celerier.